Daniel
Moura
Médico, Professor de Farmacologia, Instituto de
Farmacologia e Terapêutica, Faculdade de Medicina,
Universidade do Porto :: A toxicodependência
ao álcool e ao tabaco ::
Alcoolismo crónico e tabagismo
são comportamentos autodestrutivos muito difíceis
de abandonar, que são mantidos por duas substâncias
químicas: o etanol (também chamado álcool
etílico ou simplesmente, na linguagem diária,
álcool) das bebidas alcoólicas e a nicotina
das folhas do tabaco. Estas duas substâncias criam
dependência porque o uso repetido desperta uma
necessidade de as continuar a usar. Toda a gente sabe
que os alcoólicos ou os fumadores crónicos
procuram activamente mais doses e que é necessário
muito esforço de vontade para contrariar essa
atracção. Quando essas pessoas consomem
o químico em falta sentem-se aliviadas, até
chegar a hora em que o organismo pede mais.
A outra prova de que o alcoolismo é uma toxicodependência
está no aparecimento da síndrome de abstinência
física ou síndrome de privação,
situação que muitas pessoas descrevem
como “estar a ressacar”. São alterações
que aparecem quando as horas e os dias passam sem que
tenha havido entrada do químico no organismo.
A falta de álcool a um alcoólico crónico
causa muitas vezes ansiedade, irritação
e trémulo que se mantém por vários
dias. Mas por vezes a falta tem consequências
mais graves: alguns doentes têm crises em que
perdem os sentidos e são sacudidos por estremecimentos
muito fortes dos músculos de todo o corpo, e
outros têm uma situação que se chama
“delirium tremens”. Neste caso as pessoas
ficam muito agitadas, perdem a ligação
ao mundo, não obedecem a ninguém, têm
alucinações (às vezes são
visões de animais que se passeiam pelo corpo),
podem ser agressivas e destrutivas dos outros ou de
si próprias. Têm de ser internadas e tratadas
de urgência para interromper este estado de agitação,
que, se se mantiver descontrolado, pode levar à
morte. Passada a privação o doente fica
desintoxicado mas as recaídas são fáceis
e muitas vezes o doente recomeça a beber.
A falta do tabaco nos fumadores crónicos não
dá uma privação tão grave,
mas toda a gente sabe, por experiência própria
ou pela de pessoas conhecidas, como é difícil
deixar de fumar. Nos primeiros dias de abstinência
as pessoas sentem-se mal humoradas e com dificuldade
em fazer as tarefas normais. Com o passar dos dias estas
manifestações desaparecem e o doente deixa
o seu estado de dependência química. Mas
tal como acontece com todos os ex-toxicodependentes,
há muitas recaídas.
O etanol das bebidas alcoólicas é o químico
responsável por manter as pessoas agarradas à
bebida. A nicotina do tabaco é o químico
responsável por manter as pessoas agarradas ao
fumo do tabaco. As duas substâncias têm
efeitos muito potentes no cérebro. É impressionante
verificar que não é só o Homem
que fica a consumir sem controlo estas substâncias:
é possível fazer com que animais de experiência
como ratos e macacos, a quem se dá durante algum
tempo etanol ou nicotina, aprendam a procurar essas
substâncias e consumi-las em quantidades anormais.
É claro que nos seres humanos é tudo muito
mais complicado porque os aspectos psicológicos,
sociais e económicos podem agravar a dificuldade
em deixar os tóxicos. O lado positivo destas
influências afectivas, sociais e económicas
sobre o comportamento dos toxicodependentes é
poder fazer-se muito por estes doentes dando-lhes apoio
e cuidados humanos durante os períodos mais duros:
a ajuda da família, dos amigos e muitas vezes
dos grupos de ex-dependentes, faz maravilhas, embora
tudo passe por uma decisão do próprio
em deixar o consumo.
Vale a pena deixar de fumar porque o uso de tabaco provoca
muitas doenças entre as quais as três mais
graves e frequentes são o cancro do pulmão,
o enfisema pulmonar (é uma destruição
do pulmão que fica transformado nuns grandes
sacos cheios de ar e que deixa as pessoas com falta
de ar irremediável até morrerem) e as
doenças do coração e da circulação.
Há mais problemas , como, por exemplo, o prejuízo
que uma mãe fumadora durante a gravidez pode
fazer ao filho.
O risco é tanto maior quantos mais cigarros e
quanto mais tempo se fumar mas não há
ninguém que possa definir uma quantidade segura
de tabaco, isto é, um mínimo de cigarros
por dia que não faça mal. A única
opinião sensata é a de que a quantidade
segura de tabaco que se pode consumir por dia é
zero. Não há também nenhuma garantia
que fumar cachimbo ou charuto seja seguro.
Há centenas de substâncias químicas
diferentes no fumo do tabaco. Algumas delas são
extremamente venenosas como os chamados “alcatrões”
do tabaco que podem levar a cancros, e o monóxido
de carbono que provoca falta de oxigenação
no sangue. A nicotina entra muito depressa no sangue
através dos pulmões e entra depois também
muito depressa no cérebro onde tem um efeito
muito potente. É a falta de nicotina no cérebro
que desperta o desejo de fumar. Por isso a ideia que
correu há uns anos atrás de vender cigarros
com pouca nicotina é perigosa, porque o fumador
passa a fumar mais cigarros para obter a nicotina de
que o cérebro precisa, o que tem como resultado
fumar mais “alcatrões” e mais monóxido
de carbono.
O efeito das bebidas alcoólicas sobre a vida
e a saúde de quem as bebe e a dos outros tem
de ser discutido com muita responsabilidade.
A realização de qualquer tarefa que seja
perigosa para o nosso semelhante debaixo do efeito do
etanol é um comportamento criminoso. É
evidente que ninguém aceita ficar às mãos
de um pessoa embriagada na estrada, na sala de operações
ou no meio de uma discussão. Mas há dois
erros perigosos muito difundidos que têm de ser
corrigidos: o primeiro erro é atribuir os acidentes
à embriaguês; o segundo é pensar
que as pessoas habituadas a beber e que “aguentam”
quantidades grandes de álcool sem manifestações
de embriaguês podem ser seguras naquilo que fazem
mesmo que bebam. Sabe-se que a maioria das pessoas não
fica embriagada com 0,5 gramas de álcool por
litro de sangue mas as companhias de seguros de todo
o mundo têm estatísticas que mostram que
o risco de acidente de viação já
está aumentado com esse valor. Os estudos psicotécnicos
provam que pequenas quantidades de etanol no sangue
chegam para aumentar o comportamento de risco, mesmo
em pessoas aparentemente sóbrias: as pessoas
valorizam exageradamente as suas capacidades e subvalorizam
os riscos, e perante situações de perigo
em que têm de decidir muito depressa cometem mais
erros. Para se atingir o estado de embriaguês
a maioria das pessoas necessita de mais álcool
no sangue do que 0,5g/l, mas esta quantidade já
causa comportamentos de risco. Andam, por isso, bem
avisados os países que vigiam a sério
os condutores com estes valores de álcool no
sangue. Discute-se se o nível permitido deveria
ser mais baixo mas há muita controvérsia.
Num mundo ideal o nível seguro seria zero. No
estado actual dos nossos conhecimentos e no nosso ambiente
cultural 0,5g/l é um bom compromisso.
A fanfarronice do “aguentaço” baseia-se
na observação de que quem bebe pela primeira
vez, ou bebe poucas vezes, fica embriagado com pouco
álcool e quem bebe por hábito não
fica perturbado. Isto é verdade, e chama-se cientificamente
tolerância. Um exemplo recente muito divulgado
pelos meios de comunicação de massas é
o do condutor que foi repetidas vezes penalizado por
conduzir com níveis de álcool no sangue
superiores a 4g/l. Tratava-se de um adulto ainda jovem
com um gravíssimo problema de alcoolismo crónico
com consumos diários muito grandes de bebidas
alcoólicas e que tolerava esses níveis
sem perder os sentidos. Essa quantidade de álcool
causaria coma em muitas pessoas e seria capaz mesmo
de matar algumas (há casos de morte por envenenamento
agudo com álcool em que o nível no sangue
pouco maior é do 3g/l). Mas o “aguentaço”
não vale para os tais efeitos sobre a avaliação
do risco a que toda gente está sujeita com os
valores de 0,5g/l (ou até um pouco menos).
Os acidentes de viação são o pior
dos males que quem bebe faz aos outros, mas deve ficar
aqui ainda o registo dos que cometem violências
domésticas e das mães que bebem em exagero
durante gravidez lesando para sempre o cérebro
do filho em desenvolvimento: as crianças que
nascem de mães que bebem durante a gravidez podem
ficar com deficiências intelectuais para toda
vida (chama-se a esta situação doença
alcoólica fetal).
Para além de prejudicar os outos, o consumo crónico
de álcool destrói o fígado, o cérebro
e outros órgãos do bebedor: a consequência
mais grave é a cirrose hepática. O alcoolismo
crónico é a causa mais frequente de cirrose
do fígado, à frente por exemplo da hepatite
causada pelo vírus B. As estatísticas
mostram que há mais cirrose nos países
onde se bebe mais: França, Luxemburgo, Portugal
têm ocupado os lugares cimeiros em consumo de
álcool por habitante adulto há várias
dezenas de anos e são países em que muitas
pessoas sofrem de cirrose hepática.
Algumas das doenças dos alcoólicos crónicos
são devidas à perda de cuidados com a
alimentação e podem corrigir-se com uma
melhor nutrição, sobretudo no que diz
respeito a algumas vitaminas. Mas as vitaminas não
impedem que o álcool faça mal porque há
outras doenças que são provocadas pelo
próprio envenenamento com o etanol. O único
“remédio santo” para evitar cirrose
ou parar o seu avanço é mesmo parar de
beber.
A discussão sobre os efeitos do álcool
na saúde das pessoas ficaria desiquilibrada se
não se falasse em bebida segura e até
em bebida saudável. Há de facto muita
gente que pode tirar partido do consumo controlado de
álcool para melhorar o seu gosto e qualidade
de vida e até para reduzir um pouco o risco de
doenças do coração. É tudo
um questão de quantidade: o consumo por dia da
quantidade de álcool que existe aproximadamente
em meio copo ou num copo de vinho tinto com uma graduação
normal (estas indicações têm de
ser práticas e por isso deve-se usar as medidas
que as pessoas estão habituadas todos os dias,
mas perde-se rigor, já que, mesmo em Portugal,
o volume dos copos de vinho é muito variado)
pode considerar-se seguro e é reconhecidamente
capaz de reduzir o risco de doença cardiovascular.
Quem for capaz de ter prazer em beber estas quantidades
e manter o controlo da bebida, provavelmente fará
bem em ter estes consumos diários. Mas as pessoas
não são iguais porque há muitas
que, sem se saber bem a razão, não conseguem
ter autodomínio no consumo de álcool:
não conseguem parar. Para esta população
de risco de alcoolismo só há um conselho:
tolerância zero.
Há lugar a palavras de optimismo sobre o tratamento
e a recuperação do alcoolismo e do tabagismo:
como acontece com todas as drogas de habituação,
exige-se uma luta pessoal muito dura mas pode ser-se
bem sucedido. A solidariedade humana e social é
da maior importância, salientando-se muitas vezes
a ajuda que os grupos de ex-alcoólicos podem
dar a quem está com o seu problema descontrolado
(os grupos de ex-alcoólicos conhecidos por “alcoólicos
anónimos” têm dado bons resultados).
Não há medicamentos milagrosos para deixar
de beber ou de fumar sem esforço. Mas ao contrário
de um passado recente, quando não havia remédio,
nem fraco nem forte, hoje existem medicamentos que ajudam.
As dúvidas que havia foram afastadas por provas
satisfatórias. Para ajudar as tentativas de deixar
de fumar há medicamentos à base de nicotina
(em pastilha elástica, em adesivos que se colam
na pele, por exemplo) que têm a vantagem de aliviar
a vontade de fumar sem obrigar as pessoas a inalar as
outras coisas que há no fumo do tabaco, como
“os alcatrões” ou o monóxido
de carbono. Há também um medicamento que
reduz o apetite de fumar, chamado bupropiona (vende-se
com o nome de marca Ziban). Mas é necessário
ter muita atenção: são medicamentos
de responsabilidade que só devem ser tomados
com o conselho e receita do médico. Para além
disso tomar o medicamento sem reorganizar a vida e sem
tomar a decisão de deixar de fumar vai ser um
fracassso.
Da mesma maneira há medicamentos que ajudam as
pessoas a manter-se livres do consumo de álcool.
Mas são apenas uma ajuda. Aqui vai o nome de
alguns: natrexona, acamprosato, metronidazol, dissulfiram.
O seu uso sem orientação pelo médico
é perigoso e não resulta. É uma
loucura e um perigo fazê-lo.
O alcoolismo e o tabagismo são problemas graves
de saúde e como todas as toxicodependências
são difíceis de tratar. Mas é preciso
lembrar sempre que há cura. |